Atrelada à máquina que puxava o enorme comboio seguia uma carruagem que transportava alguma carga ligeira e o correio, depois uma outra de serviço com três a cinco funcionários que faziam o controlo da viagem em termos de cargas e descargas rápidas assim como a verificação dos bilhetes e acomodação dos passageiros. De seguida alinhavam-se mais três carruagens que transportavam aqueles que possuíam bilhetes de terceira e quarta classe, gente muito pobre, exclusivamente negros e viajando em condições difíceis. Não eram sequer os chamados “negros contratados” que o cantor Rui Mingas imortalizou numa das suas canções conhecida como “Monangambé” (contratado) e que recebiam conforme dita a lírica da sua música, “fuba podre, peixe podre, panos ruins de 50 angolares e porrada se refilares”. Esses, os “monangambés”, não viajavam de comboio, eram carregados ao monte e em pé ocupando integralmente o espaço da carroçaria aberta de muitas camionetas que percorriam todo o território angolano. O Comboio Mala transportou também alguns mártires como aqueles africanos presos pela polícia política portuguesa e que vi na estação do Bié algemados de mãos atrás das costas e sentados no chão à espera do transporte que os haveria de carregar sabe-se lá o destino. Os seus olhos estavam esbugalhados, as caras pareciam assustadas. O estado daqueles homens impressionou-me. Perante a minha curiosidade, lembro terem-me explicado que se tratava de terroristas que tinham sido apanhados. A história veio afinal provar que já eram heróis de Angola. Talvez alguns deles tenham sobrevivido e festejado a independência do seu país poucos anos mais tarde. De nada valeu ao regime colonial a tentativa de sedução do Primeiro-Ministro português na sua visita àquela província ultramarina. Na “Primavera” de Portugal de 1969, Marcelo Caetano viajou no Comboio Mala entre o Lobito e o Huambo, mostrou-se à janela e acenou à população que enchia os cais das várias estações por onde ia passando o comboio da propaganda.
Os únicos brancos que experimentaram as carruagens de terceira e quarta classe dos Comboios Mala eram os soldados portugueses sem patente que idos de Portugal desembarcavam dos navios no porto do Lobito. Partiam em comboios exclusivos e especiais mas com idênticas características aos comboios civis com destino aos “Cus de Judas” no leste de Angola. Iam combater os movimentos independentistas. Viajavam de novo no Comboio Mala quando regressavam após o cumprimento das suas missões de guerra nas armadilhas das matas angolanas. Infelizmente alguns embarcaram sem que aquela linha os trouxesse de volta. Carregados com centenas de militares, os comboios do “desassossego” faziam tristes viagens de ida ao inferno da estupidez humana. É verdade que não só a guerra os matava e estropiava. Foram muitos os acidentes que vitimaram alguns soldados portugueses. Assisti à cena em que um soldado escapou milagrosamente a um violento acidente com o Comboio Mala na gare do Bié. Naquela estação havia sempre mudança de máquina. A paragem do comboio demorava cerca de vinte minutos. Muitos soldados aproveitavam o tempo para se deslocarem a um bar que distava poucos metros da estação. O calor convidava-os à cerveja fresca "Cuca" ou "Nocal" servidas a copo, os “finos” como eram conhecidos. O maquinista apitou, o comboio começou a andar e alguns dos soldados corriam do bar para o apanharem já em andamento. Um dos soldados mais atrasado corria desesperado com pacotes de bolachas numa das mãos enquanto com a outra procurava agarrar-se ao corrimão da escada para subir à carruagem. Escorregou, as bolachas espalharam-se pelo chão, as suas pernas ficaram penduradas entre o cais e o comboio enquanto um camarada o agarrava por um dos braços puxando-o e salvando-o de uma morte quase certa. Era uma viagem de fim de missão, este soldado escapou da guerra e do desastre. Talvez nunca mais se tenha esquecido do Comboio Mala nem eu daquele desesperante episódio.
Às carruagens de terceira e quarta classe seguiam-se-lhes mais três com superiores condições de acomodação, nestas viajavam os passageiros com bilhete de segunda classe. A separa-las da única carruagem de primeira classe, existiam outras duas que compunham a cozinha, a copa e o restaurante com um serviço aprimorado fornecido pelo hotel Términus do Lobito e que continua a manter excelente qualidade na hotelaria angolana. Nas décadas de sessenta e setenta, o Hotel Términus chegou a ser considerado pela especialidade como um dos mais requintados do mundo. Pequenos-almoços à inglesa, que independentemente do género os angolanos apelidam de “mata-bicho” quando se trata da primeira refeição do dia, eram saboreados de manhã cedo tentando cada um de nós sentar-se junto a uma janela para ao mesmo tempo vislumbrar maravilhado o excelente panorama que o Comboio Mala nos levava a descobrir. O ritual repetia-se à hora do almoço ou do jantar depois de um funcionário do restaurante percorrer as diversas carruagens tocando várias vezes uma campainha apropriada agitando-a na mão com algum vigor para deste modo avisar os passageiros da existência de mesas livres e que antes haviam já optado para a série da sua respectiva refeição. O número de séries variava conforme as encomendas solicitadas previamente e espaçavam entre elas cerca de quarenta e cinco minutos. Igualmente ao fim do dia havia quem se deslocasse à carruagem restaurante para se deliciar com uma bebida fresca em descontraída conversa ou preferindo o silêncio isolado com os olhos postos lá fora fixados num quadro paisagístico em movimento tão diversificado e com tão rara beleza e espectacularidade.
Os camarotes das carruagens onde se instalavam os passageiros eram muito acolhedores e bem confortáveis. Conforme a classe e, as opções escolhidas pelos passageiros, cada um deles comportava duas ou quatro pessoas e até em alguns havia o privilégio de se acomodar uma única pessoa. As paredes de madeira expunham fotografias emolduradas ainda a preto e branco divulgando aspectos históricos do Caminho de Ferro de Benguela, seus locais de passagem ou simplesmente variadas paisagens de Angola. Conheci gente que fez viagens de Lua de Mel no Comboio Mala e que o rebaptizou de Comboio do Amor.
A história do Caminho de Ferro de Benguela está desde 1966 também ligado às guerras que assolaram o território angolano. Todos os comboios daquela linha, incluído o Comboio Mala, tiveram que se adaptar às contingências da guerra. Nos anos que antecederam a independência as viagens tornaram-se mais demoradas. No leste de Angola, entre Silva Porto (Kuíto) e a última estação junto à fronteira Teixeira de Sousa (Luau) os comboios não circulavam durante a noite. Pernoitavam nas estações seguras com os passageiros no seu interior para depois prosseguirem viagem de madrugada cedo. Nessa zona era também hábito acrescentar a todos os comboios mais uma carruagem de transporte aberta (vagão) carregada com sacos de areia à frente da própria máquina com a finalidade de atenuar os eventuais estragos causados pelas minas que pudessem ser colocadas na linha férrea. Outras medidas de segurança foram adoptadas. Com cerca de 5 a 10 minutos de diferença circulava na dianteira dos comboios uma espécie de furgoneta ferroviária conhecida no meio por ATL, pequenos veículos ferroviários que serviam para o apoio na reparação e fiscalização das linhas mas que, acabaram por prestar outro tipo de serviços como o da vigilância feita por algumas forças militarizadas abrindo caminho seguro para que os comboios prosseguissem o seu trajecto. Não era aconselhável aos passageiros exporem-se demasiadamente à janela das carruagens nas zonas problemáticas. As próprias vigias onde seguiam os maquinistas estavam adaptadas com protecções de aço com o intuito de evitar a penetração das balas na eventualidade de uma emboscada por um ataque guerrilheiro. Não há memória de problemas causados pela guerrilha aos passageiros do Comboio Mala.
O CFB não atravessava apenas o território angolano. Trespassou também o coração daqueles que com ele viveram enchendo-lhes a memória. Empregou no final dos anos 70 mais de 14000 funcionários fazendo depender dele mais de 40000 mil pessoas. Ligou dezenas de povoações ao longo da sua linha desenvolvendo vilas e cidades muitas das quais repletas de história e recordações. Foi uma bênção ter viajado dezenas de vezes nos comboios do CFB noutras viagens mais curtas. Vivi e cresci em várias terras por onde o caminho-de-ferro passava e sempre muito perto das suas estações. Divertia-me quando pedia ao meu pai para dizer de cor em sequência o nome de todas as estações do CFB. Não falhava uma. “O velhote” conhecia o CFB como a palma das mãos, vivemos com ele. Residimos no Cubal, terra de fazendeiros do algodão e do sisal, Nova Lisboa (Huambo) no planalto central e segunda cidade de Angola com o clima mais ameno. Viajei no Comboio Mala até Nova Lisboa (Huambo), a cidade mais europeia de Angola, para assistir às famosas corridas de automóveis denominadas “As 6Horas Internacionais do Huambo”. Vi descer a Granja e a grande velocidade o Mário Araújo Cabral (Nicha Cabral), o António Peixinho, o Emílio Marta que adquiriu o carro mais histórico de todos e que fora um dos vencedores das míticas 24Horas de Le Mans, um FordGt40 e, entre tantos estrangeiros, os corredores da terra como o Santos Peras, Hélder de Sousa, Jorge Pego todos de Luanda e ainda o Herculano Areias, Carlos Conde e o Eurico Lopes de Almeida estes de Benguela. Recordo a morte do benguelense Freddy Vaz que se despistou ao volante do seu Cortina GT junto ao edifício dos Correios de Nova Lisboa. Vivi no Lobito numa casa de um bairro do CFB localizado na famosa Restinga banhado pela baía e pelo oceano Atlântico e de onde anos mais tarde iria partir para a Europa agora não num qualquer Comboio Mala mas, porque a história e a vida são implacáveis, a bordo do paquete Infante D. Henrique com destino a Portugal. Vivi e estudei no Bié, em Silva Porto (Kuíto) no colégio Marista. No início e no final dos períodos escolares uma carrinha conduzida por um “irmão” marista deslocava-se à gare que distava cerca de 5 kms da cidade e onde estacionavam os Comboio Mala para buscar ou levar os alunos internos vindos das terras mais longínquas e que frequentavam um dos colégios mais famosos de Angola. Recordo a pernoita que fiz nessa grande viagem na estação fronteiriça de Teixeira de Sousa (Luau). Aproveitei para visitar a vila depois do jantar. Havia um bailarico no clube recreativo. A pista de dança era o recinto de um campo de futebol de salão. Não tinha cobertura. Com receio que pelo ar fosse lançada por um guerrilheiro uma qualquer bomba não tive coragem em manter-me ali por muito mais tempo. Regressei ao meu compartimento do comboio para dormir e nem dei pela sua partida durante a madrugada. Por fim recordo os melhores anos da minha vida e que foram passados naquela cidade que deu nome ao caminho-de-ferro, Benguela, a cidade das melhores praias, dos grandes espaços, das avenidas largas, de tantos jardins e da linda mestiçagem. Depois de Luanda talvez a cidade mais famosa pela sua intelectualidade opositora ao regime colonial português, terra da poetisa Alda Lara ( Terra! Minha eternamente…Terra das acácias, dos dongos, dos cólios baloiçando, mansamente…mansamente!...Terra! Ainda sou a mesma! Ainda sou a que num canto novo, pura e livre, me levanto, ao aceno do teu Povo!...). Benguela, cidade natal do mais conhecido escritor angolano Artur Pestana (Pepetela), autor de “Mayombe”, o retrato das vidas e pensamentos dos guerrilheiros angolanos durante a guerra colonial, de “Yaka”, a história de 100 anos de uma família colonial, da “Geração da Utopia”, a desilusão de gente sonhadora ao mesmo tempo que lutadora, da “Gloriosa Família” romance grandioso com personagens angolanas antes da colonização portuguesa e tantos outros. Pepetela levou-nos a conhecer melhor Angola e o seu povo, o Caminho de Ferro de Benguela, também.
A guerra pós-independência fez parar todos os comboios do CFB. Dezenas de pontes de grandes dimensões e linhas ficaram em grande parte destruídas ou danificadas. Restou apenas a ligação entre o Lobito e Benguela, uma extensão de apenas 30Kms dos mais de 1300 e que anos mais tarde numa das minhas viagens feitas a Angola fiz questão de percorrer reconhecendo nesse curto trajecto de 30 minutos, a paisagem fortemente agrícola circundante ao rio Cavaco perto de Benguela, a estação mais bonita do CFB na Catumbela, a agitação das vendedoras de fruta na estação da Damba Maria e a entrada magnífica com os flamingos a esvoaçar sobre as salinas na cidade do Lobito onde o comboio termina a sua marcha na estação da Restinga e, onde se mantém ainda impecavelmente exposta a primeira locomotiva do CFB com mais de 100 anos. Lá estava numa das linhas de recolha, totalmente fechada como que abandonada e que reconheci de imediato, uma carruagem restaurante do Comboio Mala, certamente uma das que tive o prazer de viajar como daquela vez memorável entre o Lobito e Teixeira de Sousa (Luau) há mais de 4 décadas atrás.
Depois de finalmente alcançada a paz necessária, o funcionamento de toda a linha férrea volta a ser um desígnio nacional para a economia, as populações e as autoridades angolanas. Apesar de alguns contratempos próprios de uma obra que envolve verbas quase que incalculáveis e de difícil execução, o governo de Angola adjudicou agora aos chineses a reconstrução das novas infra-estruturas do CFB. Os comboios já conseguem circular entre o Lobito e a vila do Cubal numa distância de cerca de 150 kms. As antigas estações da Catumbela e Benguela lamentavelmente foram totalmente destruídas e não recuperadas como seria desejável. Vão agora ser erguidas novas estações.
Felizmente tenho a oportunidade de me deslocar regularmente a Angola e sobretudo à cidade de Benguela. Mantenho ainda a esperança de voltar a ver o CFB reconstruído e em funcionamento. Ter a possibilidade de poder percorrer de novo num Comboio Mala toda a linha do CFB numa viagem de ida e volta mesmo que noutras circunstâncias. Será com certeza diferente mas, a paisagem e os cheiros por onde o Comboio Mala passava continuam lá como se o tempo não existisse. Aiué, Kurikutela.